O amor imortaliza quem amou e não devia. Os perigos a que estava sujeito impediam que se manifestasse a ânsia incontida de tudo sacrificar na pedra da sua deusa protectora.
Há inúmeras histórias de amor que sobreviveram ao rotineiro rolar dos séculos, alimentadas por ondas irrequietas da imaginação que se vai desenvolvendo caprichosamente.
A nossa História não foge à de outros países onde episódios romanescos de reis, clérigos, fidalgos e freiras exaltaram as suas vidas, amando até ao total esquecimento de juramentos feitos em nome do respeito devido ao próximo ou a Deus.
Cada episódio daria lugar a considerações de vária ordem.
Mas, perguntamo-nos: até onde valeria a pena debruçarmo-nos sobre a trama entretecida de juras de amor, de promessas de lealdade e de eterna devoção?
Na roda-viva da vida são pedaços de uma realidade inextinguível, são emergentes da condição de existir.
Todavia, há alguns dramas de amor a que a voz do povo, a literatura e a arte deram a perenidade.
Ficam vinculados à amálgama social que, ora se fortalece em ciclos propícios, ora se definha em ciclos redutores. Não se podem expurgar e, a propósito de uma efeméride, ou a propósito de revivalismos estéticos emergem da superfície das águas tranquilas, onde pareciam adormecidos.
Dramas de amor sempre houve - tantos ficaram apenas na intimidade de um círculo restrito dos intervenientes. Foram, por assim dizer, um acontecimento de intimidade, não foram envolvidos pela tradição.
Portugal conta no seu historial amoroso com um drama cujo desfecho violento, tingido de sangue, continua a estar imbuído de alguma indefinição. Este mistério tem adensado a sua sobrevivência, como acontece, aliás, com fenómenos de consciência colectiva que se alimentam de interrogações sem respostas clarividentes.
O amor de Pedro e Inês conta-se entre os que alimentam a piedade do povo e deram origem a inspirados e belos trechos repassados de um lirismo comovente.
Todos os portugueses medianamente cultos conhecem a trágica convivência entre o nosso rei D. Pedro I e Inês de Castro, senhora natural da Galiza - região de paisagem doce, envolvida pela suavidade de um verde tenro e o azul celeste retemperador. Cedo foi levada para Castela, para junto de sua prima D. Constança Manuel - senhora de ascendência real e que veio a casar-se com o nosso então príncipe D. Pedro.
No seu séquito, D. Constança trouxe várias damas e, entre elas, a sua prima e muito dedicada Inês de Castro.
Chegada a Portugal sucedeu-se o cerimonial próprio de um acontecimento marcante na vida de um príncipe herdeiro. Houve apresentações das personagens mais proximamente envolvidas e, diz a tradição, que a troca de olhares entre Pedro e Inês foi fulminante; que o noivo de Constança não mais deixou de pensar na formosa dama castelhana, de cabelos louros como o trigo e colo de alabastro, símbolo de beleza e postura fidalga.
Diz o cronista que D. Pedro foi um marido dedicado, o que não obstava à grande mágoa de D. Constança que cedo se apercebeu da paixão dominante de seu marido pela quase irmã que trouxera consigo.
Procurou evitar o enraizamento deste amor, convidando D. Inês para madrinha do infante D. Luís, o que os vinculava ao respeito pelo Direito Canónico, uma vez que o compadrio era um impeditivo de relações adúlteras. Mas, o Infante morreu cedo, pelo que ficou sem efeito a medida tomada por D. Constança.
E a paixão manteve-se - platónica ou não - até que a morte de Constança pôs fim a qualquer pudor de consciência que houvesse da parte dos dois enamorados.
D. Afonso IV ordenou que D. Inês fosse desterrada na esperança de que o seu afastamento fizesse reflectir D. Pedro que continuava avesso a cumprir a vontade do pai, casando-se, novamente, fosse com que princesa fosse.
Entretanto nasceram três infantes - D. João, D. Dinis e D. Beatriz - testemunhas de um amor profundo que o tempo tornara mais cúmplice.
À volta desta ligação foi-se adensando um crescente mal-estar, não só pela firme resolução de o príncipe não conservar a memória de um adultério cometido, que fez sofrer a corte, como pela desconfiança que alguns nobres próximos de D. Afonso IV nutriam pelos irmãos de Inês de Castro, nobres e aguerridos cavaleiros que, segundo aqueles, podiam pôr em perigo a independência de Portugal.
Segundo os acontecimentos analisados à luz de investigadores mais recentes, esta tese começa a não constituir o ponto fulcral da sentença de morte proferida pelo Rei, contra Inês de Castro. Tudo não teria passado de intrigas da corte.
Em data indeterminada, D. Pedro decidiu trazer Inês para Coimbra, refúgio bucólico de amantes que sentem reforçado o seu amor, pela paisagem idílica que se estende a seus pés, e onde os aromas de uma natureza pujante e generosa mais terão envolvido os sentidos sedentos de ternura e afecto.
Esta felicidade é cortada, abruptamente, pela decisão irrevogável de Afonso IV. Os seus conselheiros foram mais fortes do que a sua complacência e, influenciado pelas suas intrigas, decreta a execução de D. Inês.
Camões em "Os Lusíadas" diz "… arrancam de espadas de aço fino… no colo de alabastro …as espadas banhando …" forma de dizer que, não podendo ser considerado um facto histórico incontestável, demonstra que, sendo Inês de Castro uma senhora de alta estirpe, não podia ser executada senão pela degolação. O mesmo se pode concluir de uma gravura de um códice de Lorvão, da época medieval.
D. Inês de Castro foi executada no dia 7 de Janeiro de 1355. Decorreram 650 anos sobre esse dia funesto em que a morte se sobrepôs ao anseio de uma vida dedicada ao amor pelo seu amado e pelos seus filhos.
A lenda apoderou-se de todo este trágico destino. O povo chorou a mãe que deixou três crianças órfãs e o mesmo povo as amou, no decorrer dos anos.
D. Inês de Castro foi celebrada, séculos mais tarde, por Camões que no seu poema épico a cantou em versos do mais puro e belo lirismo.
Coimbra ficou para sempre ligada ao drama aqui desenrolado.
"As filhas do Mondego, a morte escura
Longo tempo chorando, memoraram
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O nome puseram que inda dura
Dos amores de Inês que ali passaram
Vede que fresca fonte rega as flores
Que lágrimas são água, e o nome amores."
A Quinta das Lágrimas é o espaço verdejante e calmo que tem visto brotar as lágrimas sentidas de Inês, ora com saudades do amado ausente em montarias, ora à beira da morte, em trágica súplica a D. Afonso IV para que a poupasse à ira dos seus algozes.
Também, ainda no século XVI, António Ferreira escreveu a "Castro" - "tragédia mui sentida e elegante" - em que o autor quer redimir a figura de Inês, mulher que fez do amor a sua vida e, vítima inocente, é imolada a esse mesmo amor.
O lirismo de Camões e o de António Ferreira, que cantou Inês muitos anos após a emoção vivida mesmo em cima dos acontecimentos, mostra que o drama desenrolado no "saudoso campo do Mondego" foi ecoando pelas quebradas do tempo.
A fala do povo não se calou e a tragédia foi sendo conhecida de geração em geração.
Quem vai ao Mosteiro de Alcobaça e vibra com o silêncio da austeridade das suas naves, não deixa de se extasiar, perante a magnificência dos dois túmulos onde repousam os corpos dos dois amantes.
Eles são, no seu simbolismo, o nosso Taj Mahal.
D. Pedro quis, séculos antes, perpetuar, na pedra lavrada o seu amor por Inês e tudo lhe terá parecido medíocre perante o muito que quis dar-lhe, em vida, e não conseguiu.
As mãos e a sensibilidade dos artífices fizeram da desditosa Inês de Castro a rainha que só o foi na intenção e no desejo do Rei desesperado.
Foi assim que, recorrendo à perenidade da arte, D. Pedro satisfez o seu anseio de elevar a mulher amada ao cume da realeza.
Na placidez da expressão da sua face, a cabeça coroada e protegida pelo baldaquino - tal como a do monarca - Inês ali repousa, símbolo do amor elevado ao mais alto expoente, o amor que fica "Até ao fim do Mundo".
Citação: Maria Noémia de Melo Leitão