Episódio de Inês de Castro
(Lusíadas - Luís de Camões)
Índice
Introdução
O amor-paixão e o inevitável fim trágico
O “eu” versus a sociedade/o “outro”
Lirismo e simbolismos presentes no episódio de Inês de Castro de Luís de Camões
Conclusão
Bibliografia
Introdução
A história e o mito que envolvem os amores de D. Inês de Castro e D. Pedro têm servido como tema para várias obras literárias. Desde autores nacionais a estrangeiros; autores de séculos distantes a autores nossos contemporâneos, a verdade é que a morte de Inês de Castro tem servido de inspiração literária e, por tal, esta história de amor portuguesa superou a temporalidade.
É no século XVI que surgem as primeiras obras literárias, de que há registo, a fazer referência a este amor: Garcia de Resende em As Trovas à Morte de Inês de Castro, Luís de Camões no Canto III d’ Os Lusíadas e António Ferreira em A Castro (a primeira tragédia clássica portuguesa). Desde então, podemos constatar a presença desta temática em todos os séculos, tanto na literatura erudita, como na literatura popular.
Com este trabalho proponho tratar alguns dos temas responsáveis pela imortalização de Inês de Castro, tal como a repercussão do tema inesiano em Os Lusíadas, de Luís de Camões.
O amor-paixão e o inevitável fim trágico
Poderíamos tentar encontrar várias respostas para esta perenidade do tema inesiano, no entanto, acabaríamos por formar grupos de respostas subjectivas. São vários os sub-temas e mitos por detrás dos amores de Inês e Pedro, cada um deles tem dado lugar a inúmeras interpretações. Embora as interpretações sejam subjectivas e diferentes de si mesmas, a verdade é que todas elas têm algo em comum: o mito do amor-paixão, que desemboca irremediavelmente na morte. Este mito tem sido um dos preferidos ao longo dos tempos, é aquele que faz o Homem sonhar, é aquele que causa uma certa compaixão e comoção. Tristão e Isolda; Romeu e Julieta; Teresa e Simão; são todos casais que têm como destino um fim trágico. Esse destino surge a partir do momento que decidem tentar alcançar o impossível. Todos estes casos caminharam para o abismo, abismo esse que em Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, vem bem retratado numa carta que Simão escreve a Teresa: Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um abismo.[1] No caso específico de Inês de Castro, esta desafia o poder do Estado, isto é, desafia a vontade de Afonso IV, é esta a sua hybris. Por motivos de ordem política Afonso IV não aceita Inês de Castro como esposa legítima de D. Pedro e, por tal, ela terá de morrer, pois escolheu entregar-se a este amor. O abismo é, então, a partir dessa escolha, inevitável.
No entanto, é o fim trágico (catástrofe) desta história de amor que a torna transcendente. Não houvesse nenhum obstáculo e nenhum desafio, seria uma história de amor igual a tantas outras. O desespero e o sofrimento progressivo (pathos) de Inês de Castro são elementos que têm sido fortemente explorados por vários escritores. Luís de Camões dedica dezanove estâncias d’ Os Lusíadas ao episódio de Inês de Castro. Também aqui é explorado o carácter trágico do mito inesiano. O episódio foca o encontro de D. Inês com Afonso IV, os pedidos de clemência e a injustiça e ferocidade em redor da morte da amada de D. Pedro. O início da narração deixa antever o desfecho do mito, isto é, sabemos à partida que o desenlace é trágico, está indiciado:
O caso triste e digno de memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de morta foi rainha. [2]
Camões aprofunda a dialéctica amor-paixão/fim trágico na estância 119, onde invoca através duma apóstrofe o puro Amor, atribuindo-lhe características dum deus despótico. Este Amor que surge com letra maiúscula poderá referir-se ao próprio Cúpido (constituindo assim uma antonomásia), filho de Vénus, ou ao Amor puro, aquele amor-paixão que é avassalador (como já vimos). Analisemos a estância:
Tu, só tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano
Tuas aras banhar em sangue humano.
Há uma clara culpabilização do amor, é-lhe atribuído características humanas (animismo), mas não dum ser humano qualquer, trata-se dum ser inexorável, áspero e tirano que exige sacrifícios, faz vítimas. Todos os adjectivos presentes nesta estância têm uma conotação negativa e as aliterações em “r”, “m” e “f” dão ênfase à ferocidade e barbaridade com que este Amor trata as suas vítimas. Estas vítimas surgem, ainda, como inimigas, como se duma batalha se se tratasse, esta batalha só acaba quando o Amor vê saciado o seu desejo: sangue humano, lágrimas não são o suficiente.
Bastaria olharmos para esta estância do Canto Terceiro d’ Os Lusíadas para compreendermos como o amor-paixão é algo tão intenso e arrebatadora que poderá ter um fim tão violento como ele próprio é.
O “eu” versus a sociedade/o “outro”
A dicotomia “eu”/sociedade é uma dicotomia inexaurível. É no século XIX, com o Romantismo, que atinge o seu esplendor, o Homem é visto como um Bom Selvagem (ROUSSEAU) que é corrompido pela sociedade ou que nunca é aceite por esta. Por tal, é natural que os intelectuais românticos tenham visto em Inês de Castro a protagonista perfeita. O amor trágico de Inês e Pedro teve lugar na época medieval (época favorita dos românticos) e viu como seu opositor a sociedade, corporizada no Estado e em Afonso IV.
No entanto, já no século XVI se registou um interesse por esta temática. Garcia de Resende escreveu as Trovas à Morte de Inês de Castro no Cancioneiro Geral de 1516; António Ferreira explorou esta temática em A Castro; e Luís de Camões concentrou o seu episódio lírico de Os Lusíadas nesta problemática.[3]
Inês de Castro constituía um obstáculo e um problema para Afonso IV, mais concretamente para os interesses do Estado. Havia o perigo de Inês vir a ser rainha e tal era considerado arriscado porque Inês era filha de galegos e, uma vez rainha, a independência de Portugal poderia estar ameaçada. Havia também receio que os filhos de Inês de Castro e Dom Pedro pudessem vir a lutar contra os filhos de Dona Constança e Dom Pedro pelo trono. Não nos podemos esquecer de que esta história se desenrola em pleno século XIV, uma época de diferenciação cultural e afirmação política das nacionalidades. Muitas batalhas haviam sido travadas para alcançar independência, o medo de perder tudo aquilo pelo qual se tinha lutado (e ainda se estava a lutar) era bem visível. Assim, torna-se claro como o casamento de Inês e de Pedro não era politicamente favorável aos interesses do Estado. Cabia a Dom Afonso IV agir de acordo com os interesses nacionais, mesmo que isso significasse matar uma inocente e fazer sofrer o seu próprio filho.
Todo o episódio dedicado a Inês de Castro n’ Os Lusíadas foca este dilema. Afonso IV, juntamente com os seus conselheiros, vai ao encontro de Inês para a tirar ao mundo. No entanto, a dada altura Afonso IV fica comovido com os pedidos de clemência de Inês e, se não fosse a pressão do povo, teria voltado atrás na sua decisão. Vejamos em pormenor a estância 130:
Queria pedoar-lhe o Rei benigno,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ua dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
Podemos constatar que a vontade do Rei nesta fase era a de poupar Inês, sendo, até, apelidado de Rei benigno. No entanto, a conjunção adversativa “mas” coloca o povo e o destino contra Inês e contra, inclusive, a vontade de Afonso IV. As razões do povo já conhecemos, dizem respeito ao interesse nacional. Afonso IV como representante do povo teria que responder aos seus pedidos, e caso voltasse atrás haveria também a hipótese de lhe ser posto em questão a sua bravura e absolutismo. Quanto ao destino como opositor, é um elemento que se encontra sempre presente nas tragédias, Camões dá assim ênfase a este elemento trágico.
É importante também salientar a interrogação retórica presente no final desta estância. Luís de Camões faz uma espécie de denúncia e deixa no ar a verdadeira natureza destes homens que mostram a sua valentia atacando uma dama indefesa.
Contudo, como já foi dito, caso não houvesse um interesse nacional em oposição aos amores de Pedro e Inês, esta tragédia nunca teria acontecido. Não é possível compreender inteiramente a situação e o destino de Inês sem que se considere a própria situação de Afonso IV (situação essa que analisámos nos parágrafos anteriores). Assim, Inês e Afonso IV são uma espécie de Antígona e Creonte. Ambos têm alguns traços em comum, são fiéis às suas posições e vontades e, por tal, sofrem as consequências. Tal como Antígona, a figura de Inês não teria força e expressão se não houvesse um rei a fazer-lhe oposição.
Lirismo e simbolismos presentes no episódio de Inês de Castro de Luís de Camões
É do conhecimento de todos que Os Lusíadas é uma obra de cariz épico onde o universo masculino é o predominante. Assim, todo o episódio de Inês de Castro entra em perfeito contraste com a restante obra. Neste episódio a personagem central é feminina e o lirismo presente nos sonetos camonianos é transposto para estas estâncias. Luís de Camões consegue estabelecer com o leitor um contacto inquestionavelmente emotivo. O leitor além de emocionar-se com os versos jamais conseguirá esquecê-los. O desespero que Camões coloca nas falas de Inês (inventadas por si) faz com que um universo de terror progrida e “arraste” consigo o próprio leitor. Existem momentos em que o leitor é levado a sentir compaixão e levado também a partilhar o sofrimento das personagens da tragédia, a piedade perante tal destino trágico instala-se dando assim origem à Catarse.
Os argumentos de Inês estão carregados de alusões à mitologia pagã (tipicamente Clássico), como são os casos das referências à deusa Natura, a Rómulo e a Remo. Estas referências são simbólicas pois colocam os animais ferozes e irracionais em contraste com Afonso IV. A amante de Dom Pedro chama a atenção do rei para a piedade que é possível encontrar-se nas feras, piedade essa que não estava a conseguir obter do soberano.
Ao ver que não está a conseguir demover o rei da sua decisão, Inês apela a este que pense nos filhos que ficarão órfãos, filhos estes que são netos de Afonso IV (estância 127).
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ua donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Nesta estância o rei cruel contrasta com a mulher frágil e inocente, a oração parentética (introduzida habilmente por Camões) questiona a natureza deste soberano. Inês é caracterizada como sendo fraca e sem força (pleonasmo) portanto está à mercê de Dom Afonso IV. Qualquer ser humano ficaria comovido perante tal cenário e, ao matar uma dama indefesa e sem culpa, Afonso IV revela-se como mais selvagem que todos os animais ferozes.
Inês é assassinada e todos os elementos da Natureza reflectem esta morte (típico das produções líricas renascentistas): o sol esconde-se; os vales reproduziram em eco o último sopro de vida de Inês que continha o nome do seu amado; e as ninfas do Mondego choraram durante muito tempo e estas lágrimas perpetuaram-se na Fonte da Lágrimas (na Quinta das Lágrimas, em Coimbra). O episódio termina com a referência a esta fonte mágica, dando um aspecto ainda mais lendário a esta história de amor.
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.
As ninfas do Mondego haviam testemunhado esta linda história de amor, pois foi nos saudosos campos do Mondego que Inês e Pedro se terão visto pela primeira vez; e nos arvoredos da Fonte dos Amores que terão tido os seus encontros secretos. Reza também a lenda que o sangue que a amada de Dom Pedro derramou está, ainda hoje, gravado numa rocha. Todavia, de acordo com os especialistas a cor avermelhada que podemos constatar na rocha deve-se à presença de uma alga, a Hildenbranthiarosea. No entanto, muitos preferem ignorar a explicação científica para que o mito não perca o seu fantástico e maravilhoso.
Muito se tem escrito e dito sobre a história trágica de Inês de Castro e Dom Pedro. A História reproduz os factos, mas a Literatura tem mistificado estes factos, transformando esta história de amor numa das mais belas histórias de amor a nível mundial. São muitos os turistas que visitam os túmulos e muitos aqueles que querem passear pelos jardins, outrora secretos, de Pedro e Inês.
Existem vários aspectos da lenda que a História não consegue comprovar[4]. Contudo, quem conhece esta história de amor prefere acreditar em toda a magia que a envolve, tudo aquilo que a transformou numa parte da nossa tradição, tradição de há já seiscentos e cinquenta anos. Tradição que irá continuar a apaixonar as futuras gerações.
Bibliografia
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AAVV, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Mem Martins, Ed. Verbo, 1976
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CAMÕES, Luís de Vaz, Os Lusíadas, , Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, 2ª edição
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FRANCO, António, Memória de Inês de Castro, Mem Martins, Edições Europa-América, 1990
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LOPES, Óscar e SARAIVA, António José, História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1996, 17ª edição
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SOUSA, Maria Leonor de, Inês de Castro – Um Tema Português na Europa, Lisboa, Edições 70, 1987
Bibliografia Internet
[1] CASTELO BRANCO, Camilo, Amor de Perdição, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995, capítulo X, página 106
[2] CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999, 2ª edição, página 172, Canto Terceiro, estância 118
[3] Luís de Camões contribuiu fortemente para a afirmação de Inês de Castro na literatura nacional. O episódio de Inês de Castro está envolto numa extrema emotividade.
[4] É o caso de documentos a comprovarem o casamento de Pedro e Inês e da coroação de Inês depois de morta.
Por Sandra Macedo Santos